[Ananda Martins. Memórias de rio e de Gente. Dissertação de Mestrado 2016-2018]
Segundo o dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2006), a palavra lama designa uma “mistura viscosa, pegajosa, de argila matéria orgânica e água, barro, lodo, visa” ou, ainda, pode significar o “caráter daquilo que degrada, envergonha; ação vil, baixeza, aviltamento”. Até o dia cinco de novembro de 2015, para mim esta palavra designava tão somente uma matéria orgânica ou, metaforicamente, o estado de vida deteriorado, que leva um indivíduo a se afundar em uma espécie de terra movediça da qual dificilmente emerge, através da expressão “estar na lama”. Com o rompimento da barragem de Fundão em Mariana, Minas Gerais (Brasil), a metáfora da deterioração que cabia à palavra lama cedeu lugar à materialidade da destruição dos espaços das casas e das ruas dos vilarejos encobertos pelos rejeitos de tonalidade marrom da mineradora Samarco. Desde aquela data, a lama marcou os distritos de Mariana e Barra Longa, o rio Doce e o oceano Atlântico, desmanchou construções, árvores e lugares de encontro e sobrepôs-se às cores das moradias, escolas, comércios e igrejas construídos ao longo de séculos. Hoje, a materialidade da lama também representa a força da destruição das atividades mineradoras em larga escala, que pode sucumbir lugares e modos de vida. Lama é a palavra que marca a biografia das atingidas e atingidos, por meio de uma linha que distingue suas vidas antes e após o rompimento da barragem de Fundão.
LAMA
[Luciana Souza Bragança. Jardins Possiveis. Doutorado em andamento. 2018-2022]
Começo com o conceito de possível. Possível (Lévy, 1996, p.16) seria algo que já estaria constituído, estando somente em estado latente, pronto a se transformar no real. Levy, baseado em Deleuse, considera algo previsível e estático, a passagem do possível para o real. Entretanto, mesmo dentro da previsibilidade, o possível abarca elementos não hegemônicos que mesmo com possibilidade de passagem para o real tem dificuldade para fazê-lo por condições do contexto da cidade.
Para a pesquisa, associa-se o possível à característica de geratividade e, portanto, de criatividade já latente no território. O possível é dotado de qualidades. Tais qualidades são potências abstratas que podem ou não se transformar em real, mas tem grandes chances de Fazê-lo. Jardins possíveis são híbridos de natureza /cultura presentes no território com potência para recriá-lo ao tornarem-se real.
Para Gonçalves (1998), o conceito de Natureza não é natural, e sim uma construção social, pois toda sociedade, toda cultura cria e institui uma determinada ideia de Natureza que se define como aquilo que se opõe à cultura. Esta seria então, em vários casos, algo superior que domina a natureza. Tal domínio tem origem com a agricultura. O processo de sedimentação da ideia de uma natureza objetiva e exterior ao humano e a ideia de homem não-natural e fora da natureza ocorreu e se aprofundou principalmente com a industrialização. Esse dualismo se mostra primordial para afirmar a preponderância dos humanos sobre os não-humanos, estes englobados pelo conceito moderno de natureza, e para a exploração desses bens.
Segundo o autor (GONÇALVES 1998) o movimento ecológico pode ser entendido como produto da relação natureza e sociedade, fundamentado como um movimento de caráter político-cultural, onde cada povo constrói seu conceito de natureza, estabelecendo-o ao mesmo tempo em que institui suas relações sociais. “Estávamos acostumados à ideia de que nossa fisiologia, nossa anatomia descende da dos primatas. Deveríamos habituar-nos à ideia de que o mesmo acontece com o nosso corpo social.” (GONÇALVES 1998 p.82) Mas no ocidente coloca-se a cultura contra a natureza, o que deveria ser o contrário, pois ela é um dos pilares pelo qual os homens criam suas relações sociais, sua produção material, enfim sua cultura. Cultura é, portanto parte da natureza: a forma como humanos coexistem com os não-humanos. Jardins são pois elementos possíveis para exemplificar esse conceito de natureza abrangente presentes no território.
Numa concepção clássica de jardim ele é considerado um microcosmo do infinito, a representação de um mundo, de uma cosmologia. Historicamente podemos destacar algumas dessas representações: os jardins como o microcosmo religioso, o jardim como a representação do poder e mais recentemente o jardim particular como uma projeção individual de ascensão social. A que cosmovisões eles nos remetem hoje?
Para o paisagista Frances Gilles Clément, o conceito de Jardim é uma área, pública ou privada, onde a arte da jardinagem - para o sustento, prazer, parques ou outros programas de acompanhamento, urbano ou rural - é praticada em harmonia com a natureza e o homem, livre da dominação de mercado. Eles são lugares de resistência. Diversidade, tanto biológica e cultural, bem como a preservação da água, do solo e do ar é incentivada para o bem comum.
Clément, ao construir o conceito de “Jardins planetários”, recorre à utopia buscando representar uma história da coexistência que por vezes é amigável ou hostil entre natureza e cultura. Tal construção tem origem nos primórdios dessa relação e passa por todos os continentes construindo uma história de pessoas e plantas pelo planeta. Os limites do jardim planetário são os biomas numa ideia de um continente único. Os residentes deste continente único seriam cidadãos-jardineiros, agindo com as melhores intenções em relação ao planeta e participando dos paradigmas do ecologismo que é o único projeto verdadeiro para o século XXI.
O jardim, segundo ele, superam as circunstâncias e a época. São ligados às constantes universais da vida e seus materiais estão ligados à função biológica participando de um movimento de energias. Dessa relação entre humanos e não humanos surge o conceito de “jardim em movimento” no qual as pessoas são responsáveis por uma pequena ajuda à natureza. O seu jardim é o resultado do comportamento das espécies plantadas, com seus florescimentos, frutificações, brotações ou mortes sucessivas seguindo os processos naturais sem predeterminá-los ou privá-los da sua natureza dinâmica.
O paisagista brasileiro Burle Marx é reconhecido por sua tendência de agrupar a flora em imensos borrões monocromáticos, apresentando plantas como o pigmento de uma pintura de grande porte. Se numa aproximação inicial os jardins do paisagista são caracterizados pelo controle da natureza diferentemente de Clément, seu profundo estudo sobre os contextos naturais brasileiros e as incongruências entre suas aquarelas e seus jardins resultantes apontam em outra direção. O trabalho de Burle Marx sempre foi pautado no entendimento e respeito com a natureza incorporando a flora brasileira e, consequentemente, a fauna em seus jardins. Burle Marx dizia que apenas iniciava o trabalho dos jardins, pois o tempo e o corpo completariam a ideia.
De Burle Marx a Gilles Clément, os jardins são mutáveis e incorporam na natureza, segundo suas características, não só humanas ou só não-humanos, mas um híbrido das duas possibilidades. Jardins são microecologias sujeitas ao tempo, um híbrido natural/cultural presente no território.
O conceito de heterotopia desenvolvido por Foucault (1984) também aponta para os jardins como elementos de conexão na natureza de humanos e não-humanos. As heterotopias “são espécies de utopias realizadas nas quais todos os sítios reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos”. (FOUCAULT, 1984, p. 4) A heterotopia, lugar outro, contrapõe-se assim ao lugar-comum. É, portanto, o lugar da diferenciação, do que não se submete à identidade niveladora: o lugar do outro no qual o comum se reconhece. É o estranho onde é possível reconhecer o familiar.
Os grupos sociais constroem uma identidade entre seus membros bem como sua cidade e seu espaço. Numa situação onde os espaços são criados por grupos hegemônicos, a cidade tende a se tornar o mesmo espaço. Todavia, cria-se também um lugar de diferenciação, o que quer dizer que a cidade não é feita apenas de lugares dominantes, mas também de lugares outros e dos outros. A cidade é, portanto, lugar de humanos e espaços hegemônicos bem como de híbridos naturais/culturais criados pela diferenciação.
Para Foucault (1984), os jardins são heterotopias capazes de justapor em um único lugar real vários espaços que, por suas especificidades, seriam incompatíveis. Os jardins seriam, para o autor, o exemplo mais antigo de heterotopia e são esses outros espaços diferentes, que funcionam como a contestação dos espaços onde vivemos. A cidade representaria a saída do homem da natureza, e o jardim seria o espaço outro da natureza e da pessoa-natureza na cidade.
Segundo Mongin (2013), no contexto da cidade fluxo, o mundo não é dado antecipadamente e é preciso sim reinventá-lo. Não há mais totalidades a serem representadas. Assim, o jardim não seria só a expressão de um mundo preexistente, mas a manifestação de um mundo singular onde não se formam mais mundos. Seria uma raridade num planeta urbano que falsifica as paisagens, capaz de se abrir como possibilidade. O jardim surge então como uma alternativa de recriação do mundo e sua invenção favorece outra relação. Partindo para a análise de Haesbaert (2009) sobre as novas territorialidades, os jardins podem ser um dos elementos capazes de estabelecer uma relação territorial da natureza que abarca humanos e não humanos e, principalmente, um meio experimentado por aqueles que o constroem e compartilham.
Os jardins, realizam no presente o que se quer ter no futuro. Embora não sejam confrontacionais, procuram se desconectar dos fluxos de mercado através da reciprocidade e construir uma relação na natureza que abarca humanos e não-humanos para além das trocas capitalistas. Mesmo que tenham um alcance limitado, os jardins podem ser exemplarmente pedagógicos. Configuram-se como uma resistência espacial no território.
No campo, várias entrevistas exemplificam essa concepção de natureza que inclui humanos e não-humanos que se espacializa nos Jardins.
Para Sra A. professora aposentada, “as plantas tem poder espiritual, nós após morrermos nascemos plantas. Sempre falo para meus alunos fazerem o dever de casa debaixo de uma arvore, pois a conexão ajuda.” Os jardins são para ela uma representação sagrada de religiosidade e continuidade da vida. “minha nora me deu essa bananeira e dois netinho. Deus levou ela, mas ela tá ali na bananeira.” Esse pertencimento se apresenta também nas longas conversas que a Sra. A mantem com as plantas: “são minhas amigas, companheiras. Todo dia a gente conversa e troca umas ideias.” Os jardins são também para a Sra A uma forma de estabelecer relações com o mundo e com seus vizinhos. “ Eu distribuo mudas, fruta e verdura. Quanto mais eu doo, a planta fica mais feliz. É assim né, se a gente dá amor, recebe de volta”.
Para o Sr G, monitor de oficina infantil, os jardins são uma forma de educação e de construir relações na escola. “Os meninos estão tomando uma autoestima com o meio ambiente porque eu explico eles, sabe? Eu falo, se não ces não vão saber ensinar seus netos que que é planta.” É também para ele um elemento para reconhecer outros tempos que não os da produção de bens de consumo. “ no tempo de frio eu rego três vezes por semana. No calor é todo dia. Eu molho por gravidade ( de cima pra baixo molhando as folhas) senão empoça. E as fruteza quando dá eu pego as bacia e levo pra cantina pra faze suco pros menino.” O jardim da escola é também o lugar de convivência com outros animais. “ Eu compro do meu bolso um quilo de canjiquinha. Os minino e eu ficamos observando os passarinho se fartá. Outro dia um macaco roubou meu boné! Mas macaco é assim mesmo, cé já viu né?”
O Sr T é uma pessoa de referência no bairro. Ele organiza um jardim em área remanescente em frente a sua casa. A memória do rio onde se brincava, pescava e nadava é compartilhada por ele "voltavam os menino tudo marrom de lama, e no dia seguinte tava lá, tudo dentro do rio de novo". O jardim é também forma de fazer política para T. O caso mais emblemático foi o dia em que disseram que iriam cortar os abacateiros próximos a sua casa. "Disseram que iam cortar e arrancar tudo fora". Passado algum tempo, o vizinho, a quem chamam de "Capitão", alertou que iriam, no dia seguinte cortar as árvores. "Fizemos uma arapuca." Haviam cortado umas mangueiras anteriormente e os trocos ainda não tinham sido recolhidos. Sr.T e alguns amigos posicionaram os troncos no meio da via de forma a bloquear a passagem dos caminhões que viriam fazer a supressão. Estes estacionaram, e os técnicos então caminharam com uma motosserra, dispostos a fazer o serviço. Chegando aos abacateiros os moradores protestaram e na insuficiência dos pedidos pela permanência dos abacateiros, à época carregados de frutos, a estratégia foi requisitar os pedidos de licença. "Você tem licença para realizar essa poda?", retornaram aos carros e voltaram com a licença. "E a licença da motosserra, vocês tem?" Os responsáveis voltaram aos carros, fizeram ligações e de fato, encontraram a licença: estava em Sete Lagoas, município da região metropolitana de Belo Horizonte, e a essa altura, devido aos atrasos da barricada e da negociação, tornava-se inviável o deslocamento para a obtenção da licença e a execução das operações de corte. Finaliza sorridente: "Taí ó, tudo de pé" e conta que quando é época de abacate distribui aos vizinhos, do tanto de fruta que dá! .
O conceito de Jardim já foi inicialmente definido acima, mas será aqui resumido. Comumente conceitua-se jardim por uma composição paisagística de plantas e flores de um projeto arquitetônico ou urbanístico, destinada ao lazer ou ao estudo. No espaço das grandes cidades, pautada pela predação dos elementos não-humanos da natureza, as relações orgânicas de autorregulação do ambiente natural se enfraquecem e o ser humano assume, portanto, a função de catalisador da existência de jardins. O jardim urbano surge como ferramenta de reaproximação entre humanos e não-humanos na natureza. Surge também como potência de reconhecimento dos humanos como elementos naturais. São elementos de conexão espiritual, de trocas entre humanos e humanos e entre humanos e não-humanos, de reconhecimento dos tempos da natureza que existem além dos tempos da produção, de aprendizado e de fazer política. Associando nos jardins à resiliência das plantas e animais ao reconhecimento do homem como ser natural, esses agentes legitimam outra visão de mundo e novas perspectivas de apropriação na cidade.